Caverna Fantasma
Cine Paissandú, São Paulo, 2025 
Acompanhamento curatorial e texto de Marcela Vieira
Phantom Cave
Cine Paissandú, São Paulo, 2025
Curatorial guidance and text by Marcela Vieira





Vistas da instalação
Caverna Fantasma
Installation views
Phantom Cave




















Paissandú Drive-in
Paissandú Drive-in






Fotos: Julia Thompson e Manoela Cezar

O cinema possui muitas histórias, nem todas pertencem aos filmes.
Thomas Elsaesser, Cinema como arqueologia das mídias


todas essas histórias
que são minhas agora
como falar essas histórias
talvez mostrando
Jean-Luc Godard, História(s) do cinema


A exposição Caverna Fantasma, da artista Manoela Cezar, acontece do dia 16 ao 31 de agosto em dois pisos do Cine Paissandú, localizado no centro de São Paulo, em prédio erguido sobre o curso canalizado do Rio Anhangabaú (o cinema sobre o rio, bonita imagem com a qual poderíamos evocar a célebre frase “Cinema é cachoeira”, do cineasta brasileiro Humberto Mauro). Trata-se de uma rara oportunidade para conhecer um dos pisos desse prédio, que já foi bingo e cinema, e que está fechado há mais de 20 anos ao público.

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A desconstrução de sistemas – conceituais, simbólicos, metafóricos – em busca de novos efeitos e significados é um recurso recorrente na obra de Cezar, cuja peculiar produção estende os campos artísticos e cinematográficos até eles se imiscuírem e se reconfigurarem. Nesse contexto, a desconstrução deve ser compreendida tanto como procedimento quanto como tema, em abordagens que exploram relações mútuas de comentário, autorreferência e ilustração, mas que também estão abertas a articulações simultaneamente baseadas no tradicional e no contemporâneo, na memória e no ineditismo, na obsolescência e na reinvenção, e, em uma perspectiva ainda mais abstrata, na pesquisa e na constatação, de um lado, e, de outro, nas fartas alternativas de efabulações poéticas e ficcionais. Sendo assim, oposições e ambivalências capazes de sustentar binarismos adversos tendem a se dissolver na obra de Cezar, abrindo oportunidade para novas possibilidades por vir.


Moldada por um percurso formal orientado pela montagem fílmica, a produção de Manoela Cezar apresenta-se de forma avessa às definições convencionais. Literal e simbolicamente, sua prática busca suportes que se encontram para além-tela, sem, porém, desconsiderá-la nem perdê-la de vista. As definições de “cinema” devem ser expandidas, partindo das particularidades espaciais referentes à sala de projeção até chegar a noções reformuladas de dispositivo (conceito benjaminiano que compreende a reorganização da experiência sensível), passando pela própria história do cinema e pela realização audiovisual, com seus recursos narrativos, fotográficos, performativos e sonoros.


Esses termos característicos da experiência cinematográfica então deixam de ser protagonistas na obra de Cezar e assumem uma posição emergente, iluminando o sensorial, o arquitetônico, o cenário e a encenação. Em nome do experimento estético, estas proposições encontram-se libertas da predominância do roteiro. Trabalhos como Cinema horizonte (2024), Ainda sem notícias suas (2022) e No road movie (2019-2021) são provas de soluções instalativas já apresentadas em contextos de artes visuais, como ateliês e galerias, em que a proposta fílmica encontra-se paramentada pela imersão no ambiente.


Caverna Fantasma parece ter encontrado o ambiente ideal, senão perfeito, para reunir questões presentes na pesquisa de Cezar, como se pode perceber nos trabalhos supracitados. Com capacidade para receber até 2.000 pessoas, o Cine Paissandú teve um passado glorioso por ter recebido, nos anos 1950 e 1960, uma sociedade paulistana erudita e abastada, e hoje se encontra em um avançado estágio de abandono, com um de seus principais pisos – aquele que no passado foi a sala oficial de cinema – assumindo a função de estacionamento privativo para frequentadores do centro de São Paulo. Há aqui uma observação que cabe ser mencionada: ao longo de sua produção, Cezar vem invocando os carros, apresentando-os ora como elementos instalativos e escultóricos, ora adotando pontos de vistas rodoviários via representações de paisagens, horizontes, flashes em movimento. 


O piso que aqui chamaremos de piso inferior é onde se encontra o atual estacionamento, enquanto o piso superior conserva uma das estruturas do antigo Cine Paissandú – suas arquibancadas (agora já sem assentos), o palco e a parede decorada que emolduraram o que um dia foi uma tela de projeção. Em uma das paredes do piso inferior, Cezar projeta Paissandú Drive-In, resultado de uma montagem audiovisual realizada a partir de colagem de tomadas de câmeras com perspectivas de carros que avançam pelas estradas. Para essa instalação, o cenário de estacionamento, com mínimas intervenções, mantém-se preservado em seu uso cotidiano, sendo composto pelos veículos estacionados e vazios dos frequentadores habituais. Saímos dessa “sala de projeção” com a impressão um tanto humorada de que o filme aí projetado foi feito à medida para esses veículos, que podem agora se imaginar em movimento pelos mais variados cenários e vivendo, por fim, outra vida. Ao acessarmos esse piso, é inevitável pensar no drive-in, tão popularizado nos Estados Unidos dos anos 1950 e 1960 como expressão da cultura de massa e hoje praticamente obsoleto por ter cedido às irrefreáveis pressões do mercado imobiliário – que transformou em empreendimentos mais lucrativos os amplos terrenos “vazios” antes dedicados às sessões – e pela concorrência com os grandes marketplaces normalmente instalados em shopping centers.


O piso superior, outrora sala de cinema, foi desativado no início dos anos 2000 e, desde então, está entregue à sua sorte, ou seja, a um avanço de deterioração que só não foi mais radical porque esteve protegido, em sua própria escuridão, das intempéries naturais. Trabalhando com a ausência da tela original dessa sala, Cezar instala uma tela alternativa, feita de material usado para construção civil, uma tela portanto fantasmagórica devido à transparência do material com que é fabricada. Nessa tela, instalada à distância da tela original, e mais próxima ao espectador, é projetado Caverna Fantasma, filme produzido especialmente para a ocasião, em que vemos simulado, por guias focais de iluminação, um enigmático passeio por entre as escadas, corredores e arquibancadas desse mesmo espaço em que o espectador se encontra. No filme, a ausência de corpos ou personagens cria uma sensação que leva o espectador a reconhecer a si mesmo em uma experiência formulada por um jogo cujos espectros são o próprio filme, o cinema, o espectador e, por fim, a cena como um todo.

Ao se propor o desafio de montar Caverna Fantasma nos espaços do Cine Paissandú – espaços que intimidam não apenas por sua grandiosidade arquitetônica, mas também pela atual função utilitária que assumiram –, Cezar opta por uma estratégia ousada e precisa. Recorrendo à técnica da mise en abyme, a artista projeta o cinema dentro do próprio cinema: transforma a sala em estrutura narrativa e reflexiva, em cenário e discurso, em ruína e projeto. O que se vê é uma operação de autorrepresentação em que a linguagem audiovisual encena o espaço expositivo e o espaço expositivo torna-se suporte e argumento para o filme que o ocupa. Com artifícios contemporâneos, Cezar constrói gestos de vocação arqueológica. Nesse sentido, Caverna Fantasma não é apenas um comentário sobre o estado atual do Cine Paissandú, mas uma contribuição ao pensamento sobre o cinema como forma de arte exposta à deterioração, porém resistente, capaz de sobreviver e de se reformular técnica e ideologicamente diante das contingências da história presente e futura.


Marcela Vieira